sexta-feira, julho 30, 2010

a culpa no mundo

A mesma história. Porque eu existo. Poderei fingir que não existo? Apago-me do mundo, apago a minha cara e a minha voz, apago os meus traços, nada se modificou; há apenas no meu lugar uma pequena rasura inofensiva. Hélène já não é prisioneira de um amor infeliz, Madeleine não se fará matar em Espanha, a terra será aliviada deste peso que estira as suas fibras secretas, que as faz vibrar, estalar em lugares imprevistos. Apagar-me, deixar de ser.
E no quarto, cheirando a insecticida, encontrar-se-á de manhã um cadáver opulento atulhado de cocaína.
A luz derramou-se sobre mim. Tu não te apagarás. Ninguém decidirá por ti, nem mesmo o destino. O destino dos outros és tu. Decide. Tens esse poder: uma coisa que não existia surge subitamente, sozinha no vazio, repousando apenas sobre ti, e contudo separada de ti por um abismo, lançada por cima do abismo, sem outra razão para além de si própria, cuja única razão está em ti.
Não quero. Já não quero. Fazem-nos trabalhar na neve só com uma cobertura de pano e alpargatas nos pés. E nós dizemos: «Bom. Não podemos fazer nada.» Mas se o prédio explodir, que bela colecção de cadáveres! Há em qualquer parte uma mulher que dorme; conseguiu por fim adormecer enquanto pensava: ele não fez nada, não será ele. E amanhã à noite será ele. Por minha causa. Apagar-me. Deixar de ser. Mas ainda que me mate continuarei a ser. Serei um morto. Eles continuarão amarrados à minha morte e esse vazio subitamente aparecido sobre a terra fará vibrar e estalar mil fibras imprevistas. Berthier tomará o meu lugar; ou Lenfant. Serei ainda responsável por todos esses actos que a minha ausência terá tornado possíveis. Alguém dirá a Laurent: «Vai. Não vás.» Será a minha voz. Não posso apagar-me. Não posso retirar-me para dentro de mim. Existo, fora de mim e em toda a parte do mundo; não há um palmo do meu caminho que não desemboque no caminho de outrem; não há nenhuma maneira de ser que me possa impedir de extravasar de mim a cada instante. Esta vida que teço com a minha própria substância oferece aos outros homens mil facetas desconhecidas, atravessa impetuosamente o seu destino. Ele acordou, aguarda. «Esquecer-me-ão.» A sua vida está diante dele, tão vasta. E eu estou ali, junto de ti que eu matei, carrego as espingardas que vão assassinar outrem amanhã. Não. Não quero. Renunciemos. Renunciamos, curvamos a cabeça; e além, no fundo do futuro, por cada gota de sangue que poupámos, todo esse sangue. Continuemos...
Renunciemos, continuemos. Decide. Decide já que estás aí. Tu estás aí e não há nenhuma forma de fugir. Até a minha morte me pertence só a mim.


Simone de Beauvoir - Le Sang des Autres

1 comments:

Blogger . said...

* suspiro *

31.7.10  

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